O Ritual

Dia de cortar o cabelo parece um daqueles dias quaisquer, mas não é. Munido de um ritual seu João parece cair bem para com o seu corte:

- Eu bebo uma e deixo alisar o meu couro, mas com responsabilidade!

Por esta fala, suspeita e cheia de malícia, dá para perceber quem é seu João. Com seu gingado e o teu sapato branco, exibe um sorriso esmaltado e metálico que passou por anos e anos de desgaste.

- É a vida, meu filho!

Filho, alguém que seu João não vê a muito tempo, mas segue na catira e conservas. Uma azeitona ali, uma palma acolá, uma batida no bumbum da negra, um tapa no torresmo alheio. O corte será aquele que cabe tanto o chapéu quanto o encontro com a donzela mais na noitinha. 

- Meu rapaz, hoje tenho que ir nos trinques! Aquela mulher, aquele perfume...

A mulher, neste caso era dona Charlote nome imponente e diferente. Charlote não era qualquer mulher, forte, alta, humana. Seu olhar respirava sinceridade e violência, não saía pelas manhãs, somente de noitinha. 

No cabeleireiro, aquela fezinha no burro, o time do coração apanhando, a zoação e a cerveja depois para se esfriar neste calor. Com calma e um olhar sério, Seu João lembra quando não tinha rituais nem carnavais, lembra do barbeiro da esquina, do filho, da família. 

- Queria minha mãe e o meu pai, meu filho aí deus, que tenho eles neste mundo.


O choro comove, mas é preciso continuar, os cabelos caem, poucos é verdade, surge pequenos espaços no couro alisado pelo cabeleireiro Édson. Seu pai era fã de Pelé e torcedor do Santos e passou a paixão do time e ofício ao filho, emoção esta que nunca deixou de ter ao cortar. 

- Faz parte do meu dna, não pararei de cortar e aí deus morrer neste salão. 

Seu pai também morreu no salão, com um tiro, Édson não quer a mesma morte, mas o mesmo destino. 

Destino, coisa do tempo e da vida que une Édson, seu João e Charlote. Tempo este que se passa num dia, com um ritual, uma alisada e uma noitinha. Tudo parece normal na vida periférica de nossos dias. 

Seu João que poderia ser José é como tantos por aí, com nome e sem endereço, na amargura e no desprezo. Suspira imaginando Charlote uma travesti, largada a prostituição e as drogas recebendo juras de amor e nenhum compromisso. Édson a dever de vista traficantes para sustentar seu vício sabe que o destino do pai é mesmo do teu em algum instante. 

Todos na esperança de uma mudança, talvez carinho, talvez um lar, talvez um colete. Uma chuva de sapos irá mudar estas vidas, nesta comédia que poderia ser nossa, mas é só de mais alguém que recebe o castigo de viver um ritual.

Comentários

Postagens mais visitadas