Análise do conto Vaniclélia de Marcelino Freire
A pretensão dessa análise é buscar relações entre a estilística de Marcelino Freire em contraponto a sua narradora. Um conto curto, porém que expõe toda a vulnerabilidade de uma personagem que, mesmo entregue a marginalização, busca uma maneira de refletir e desejar o oposto do que lhe é ofertado. Tece, portanto, uma apresentação similar ao narrador especulador como apresentado por Lukács. Serão trabalhadas análises com extrações de passagens do conto assim como, teóricos e críticos como Nildo Viana, Cássio Tavares e Michelly do Carmo.
Palavras-chave: Vaniclélia; Narrador Especulador, Vulnerabilidade.
Há como ser indiferente a um relato que clama vida e desejar o mínimo para sobreviver, se o há o quão sensível é a pessoa para aceitar tais condições e, se o relato for de alguém que desabafa uma das necessidades que impulsionam a nossa sociedade o chamado consumo. Se pensar em consumo, algo natural e desejável, temos um outro agravante o consumismo, o prazer pela saída em demonstrar e apresentar posses que são a essência de uma sociedade a qual se degrada a todo instante.
É nesse mundo degradante e obscuro que encontramos Vaniclélia a personagem que dá voz a tamanha angústia e reflexão da sociedade que a permeia. Consciente do seu não poder de consumo e relegada à margem social, a personagem apela para um relato que envolve a sua necessidade, a de consumo não somente para sua sobrevivência como também para um status social distante do que a sua realidade apresenta.
Precisamos aqui descrever uma análise social sobre as relações sociais e do capitalismo presentes de forma oculta, porém evocada, no conto. A análise vai de encontro ao livro Capitalismo na Era da Acumulação Integral de Nildo Viana. Neste livro, Viana trata das fases de acumulação e do estado burguês no capitalismo. Passando por várias fases de ambos, o autor conceitua vivermos num estado neoliberal e um regime de acumulação intensivo-extensivo. Não será necessário fazermos uma análise do regime, pois o conto não possui a pretensão, mas é necessário conceituar o que se entende por estado neoliberal. Segundo Viana(2009)
O estado neoliberal é a forma necessária ao novo regime, regime de acumulação integral, que é um complemento necessário ao processo de re-estruturação produtiva e alteração na relações internacionais e que se caracteriza por conter os gastos estatais, desregulamentar o mercado “flexibilizar” as relações de trabalho, subsidiar o capital oligopolista e aumentar a política de repressão e vigilância social.(VIANA, 2009, p.87)
O conceito apresentado se encontra no texto de Freire em pequena passagem do conto que demonstra a vigilância e a repressão social apresentadas estado neoliberal como “Um dia, eu tive que foder com a tropa inteira da delegacia” (p.41-42).
A descrição violenta e feroz se faz contrastada faz comum a uma visão de como é ser levada por uma relação amorosa por um estrangeiro “Casar tinha um futuro. Mesmo sabendo de umas que quebravam a cara.
O gringo era covarde, levava para ser escrava.” (p.41), parece mais se tratar de uma relação trabalhista do que uma relação de cunho amoroso, mais ligado aqui a ideologia burguesa de romance,que apresentam mais a globalização como diria Viana (2009) “Na ideologia da globalização, o ocultamento do processo de exploração permite abolir a continuidade e, ao mesmo tempo, a descontinuidade, produzindo uma novidade histórica inexistente na realidade concreta[...]” (VIANA, 2009, p.131).
Algumas passagens reiteram essa constatação “Precisava ver como o garçom e o pivete e o gerente e o taxista da frente e o povo todo nos tratava, O que cada um ganhava de gorjeta não era brincadeira. Acabava saindo rendendo pra todo mundo.Uma beleza” (p.42). Aqui apresenta as inclinações capitalistas que, quando rendiam lucro, alteravam as relações sociais e a própria visão sobre o trabalho da personagem. Como essa não apresenta mais esse chamariz que outrora tivera, cai em esquecimento e em vulnerabilidade social.
A vulnerabilidade social tem sido observado muito ao longo do crescimento das cidades que com o passar de décadas, aumentaram a sua densidade e população criando nas grandes metrópoles centros urbanos e uma periferia e, essa sim, precarizada por serviços que pouco lhe atendem. Lembra-se, portanto, o conceito de David Harvey sobre o capital por espoliação e que encontra em CANÇADO uma de as explicações teóricas ”O adensamento excessivo de áreas marcadas por precária infraestrutura tem gerado a baixa qualidade de vida dessa população e sua periferização.”(CANÇADO et al, 2014, p.15).
Em conjunto a esses fatores como essa vulnerabilidade aprofunda debilidades e provoca um resultado de esquecimento e pequenez frente às dificuldades colocadas
As condições de vulnerabilidade urbana aparecem, portanto, como resultado negativo da interação entre condições apresentadas pelo território, ou 16 estrutura de oportunidades e de risco, e as características sociais, econômicas, culturais e políticas da população do lugar. (CANÇADO et al, 2014, p.15-16)
Uma característica encontrada por Marcelino Freire é a estrutura estilística do autor em conjunto ao seu narrador. Podemos perceber no traço estilístico comum ao autor, o uso de muitas interjeições com grande presença de pontos finais. Personagens que parecem explorar várias vozes que conclamam e reclamam por sua situação degradante. Não vemos aqui um assunto, mas várias introspecções que beiram da injustiça aos azares que ocorrem na vida.
Essa realização passa a dar voz a um narrador especulador traço comum no conto contemporâneo como diria Tavares
Impossibilitado de estabelecer o nexo de necessidade entre os pormenores do caso para produzir bem formada sua narrativa, passa a propor nexos especulativos com os quais tenta preencher as lacunas de seu encadeamento. O resultado é uma narrativa que ostenta a aparência de uma linearidade conexa formalmente construída, mas à qual não corresponde nenhuma linearidade de substância. (TAVARES, 2014, p.126).
Tais passagens confirmam o conceito acima tal como “Agora ter que aguentar esse bebo belezebu”(p.41) ou “Mataram a Vaniclélia, lembra, não lembra, lembra?”(p.42) e por fim, “Nem vê que tô esperando uma criança. (p.42).
A narradora, portanto, segue uma reflexão linear dos fatos que poderiam ter ocorrido e como se manifestam no presente, a sua manifestação e tristeza a necessidade de uma realização e de um amparo não possibilitam o entendimento da sua real essência que aqui não aparece linear.
A sua real essência se encontra no consumo como realizador de sua existência e que ele, portanto, poderá indicar a quem ela é e como pode triunfar na vida frente a inúmeras amarguras. Há de se perceber que a descrição, sem citar mas que se deixa transparecer, de uma mulher que vive de programas. Isso fica mais evidente quando fala do sexo com os policiais e o frequentar em aeroportos e o tratamento recebido por estrangeiros.
O valor recebido poderia lhe dar uma vida confortável e uma condição acima da realidade social que fora inserida, mas alguns fatores a inibem do seu triunfo. Um fator é sua escolha pelo Brasil e sua renúncia em viver com um estrangeiro e que a acaba a fazendo envolver com um brasileiro que a maltrata, já que se trata de um ser marginalizado assim como a personagem.
Outro fator decisivo é a sua gravidez e como diminui o interesse sexual por parte dos clientes que ela possuía. Essa gravidez aliada a marginalização da personagem criam um cenário perfeito para um drama que sensibiliza e reflete um mundo destrutivo é capaz de desumanizar como ao final “Agora, disso ninguém tem ciência. Ninguém dá um fim” (p.42). Esse fim, podendo ser o da sua vida, da violência, da gravidez permite demonstrar como somente se existe na sociedade, por meio do texto, quem possui condições de sair de uma condição subalterna e galgar o mais rapidamente um lugar de conforto de prazer.
Por fim, em meio a uma realidade distante, reflexões que mais parecem pedras saindo da boca, Freire faz com Vaniclélia um sabor agridoce para com seu leitor. Se a leitura parece interessante e atraente como um doce saboroso a ser degustado cai no paladar e com salivas vai mostrando sua verdadeira forma em fel ao cair no estômago como um indigestão cruel e dilacerante.
Inquieto e impactante parece demonstrar, em sua leitura, a voz de uma pessoa que apresentando uma consciência concreta e urgente da sua realidade deseja mais que tudo sua dignidade e sua vida ou tentativa desta, em sonhar, viver e crer uma possibilidade. Quando se cessa essa possibilidade o fim, parece ser cruel e destrutivo sem dentes, sem amor e normalizando a violência seja ela física, social e principalmente, moral.
Referência Bibliográfica:
CANÇADO et al. Trabalhando o Conceito de Vulnerabilidade Social. Brasília. p.1-21.
TAVARES,, Cássio. “Narradores Especuladores” in Revista Signótica. Goiânia. 2014. P.121-144.
VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. Idéias&Letras. São Paulo. 2009.
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