A Representação Social em Crônicas da Vida Operária, de Roniwalter Jatobá

INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende estudar a representação social, precisamente, em Crônicas da Vida Operária de Roniwalter Jatobá. A escolha em um tema tão específico e delimitado não se faz ao acaso, tendo em vista a natureza do conteúdo e questões por ele trabalhadas.

Em um primeiro ponto, os relatos e as visões da classe operária no universo literário, pois já são conhecidos estudos no meio acadêmico sobre o operariado, sua constituição e desenvolvimento. Há de se citar o livro de Maria Auxiliadora Guzzo de Decca Indústria, Trabalho e Cotidiano: Brasil – 1889 a 1930 onde se discute o processo de formação da classe trabalhadora e sua constituição, principalmente na cidade de São Paulo como percebe a autora “São Paulo torna-se, a partir desta data, o maior centro industrial brasileiro” (DECCA, 2000, p.25) e de Eclea Bosi Cultura Popular: Leituras de Operárias ao qual a autora apresenta as leituras e visões sobre a cultura popular por parte de operárias em que “Tão admirável como seria o mundo que elas fossem chamadas a construir e a transformar com todas as virtualidades de sua pessoa, não apenas com a força do trabalho.” (BOSI, 1996, p.151), ou até mesmo a quem trabalha e desenvolve o conceito, Marx e Engels em vários livros, principalmente o Manifesto Comunista.

O segundo ponto seria a manifestação cultural do tema que é bem recorrente como em músicas da MPB, principalmente “Construção” e “Pedro Pedreiro” de Chico Buarque de Holanda, a peça teatral “Eles Não Usam Black-Tie” de Gianfrancesco Guarnieri, em documentários como “ABC da Greve” de León Hirszman, onde a teia narrativa na proposta trabalhada contempla a visão do operário. Contudo, dentro da literatura brasileira, como colocado por Fernando Morais no prefácio do livro “(...) era um dos poucos, no Brasil de hoje, a escrever sobre um tema fora de moda na nossa literatura: a classe operária.”(MORAIS, 2006, p.5), logo, não há o costume dentro da literatura brasileira à manifestação de relatos que tentem colocar o trabalhador  a compartilhar sobre suas visões, ações, àquilo que remete as suas contradições, anseios, dramas e desejos e que, ao final, mostra o trabalhador inserido dentro de uma sociedade com estruturas, condições e limitações e essa fagocitando o homem, o espaço e o tempo num Brasil na década de 70, precisamente, na cidade de São Paulo e na região do ABC.

O terceiro e último ponto que se faz mais importante, se dá pela sociedade que ela se insere e como isso é trabalhado ao longo do livro. Ao pensar a sociedade brasileira na década de 70 percebe-se a contradição inserida, primeiro o crescimento e a transformação do Brasil num país mais urbano que rural, o segundo ponto o avanço e o endurecimento da ditadura militar, terceiro ponto a migração intensa, principalmente da região nordeste para a região sudeste, neste caso, o estado de São Paulo, ao passo final de uma maior contratação de mão-de-obra por multinacionais estrangeiras com destaque as empresas do ramo automobilístico.

Em a Mão Esquerda, vemos o relato de um narrador em primeira pessoa que relata fatos ocorridos em seu trabalho ao ter um acidente em sua mão esquerda e que o impossibilita de continuar no seu trabalho. Tudo isso contado por viés memorialístico, de sonhos para com o trabalho e a busca de melhores condições financeiras para sua vida e assim, também ajudar a sua família. Tudo isso por cartas que envia para a sua cidade, parece ser no interior do Nordeste, é que é lida pela professora que lhe ensinou a ler e a escrever, pois os seus país são analfabetos.

Em “As Memórias em Alojamento” com relação ao frio, as modificações na cidade e o impacto cultural. Vemos também, a apresentação de condições precárias e de subsistência que apresentam a desumanização deste trabalhador e esse encontro em momentos que se constituem de forma até além, por exemplo, o aquecimento de corpos masculinos para aquecer no frio ou olhar amoroso para a empregada safada.

Em “Pano Vermelho”, o narrador conta por meio de anos, as modificações que sofreu ao longo da sua vida. Em meio as reclamações, perdas, mortes e o crescimento. O personagem vê perder a fé a força que encontra em seu diário anual resumido com fatos e eventos que chocam pela síntese e problemática frente à cidade e ao trabalho, por fim o personagem, de forma triste, assiste o filho mais velho prosseguir as mesmas questões que as suas, talvez com a mesma ilusão que outrora o narrador tivesse.

Em “Trabalhadores”, o narrador apresenta três personagens com o mesmo nome e destinos distintos em sua escolha, focando em um que se chamava somente João, diferente de João Jacinto e João Serafim. João narra o trabalho na fábrica, sua relação com o corte, desemprego e o banheiro como fonte de informação e percepção das ocorrências pelo desgaste, deterioração e falta de perspectiva frente ao trabalho. Em confronto com esse cenário, o narrador apresenta o clima da cidade, distinto da sua cidade, o transporte que sempre falha e se encontra precário e a noção da sua importância como mediador do trabalho que ocorria na fábrica. Sua história relata uma sobrevivência e uma lembrança diferente dos outros aos quais cruzou que ou foram esquecidos ou mortos pela não passividade que este se encontrava.

Em “No Olhos, Gases e Batatas”, a narrativa se desenrola frente as condições encontradas em meio a uma pensão habitada por trabalhadores de fábricas situadas em São Paulo. O relato mostra a dificuldade de tais trabalhadores frente ao processo de marginalização, a alimentação e a realização de leitura que fica prejudicada por conta dos gases e das batatas poluídas em virtude do esgoto que se faz presente nas proximidades, levando a fúria e ira da personagem principal.

Em “Duas Margens”, a personagem narra em terceira pessoa os acontecimentos de sua filha que foi engravidada em virtude de uma relação amorosa entre patrão e empregada, apresentando os contrastes culturais entre o meio urbano e rural tais como, os valores da virgindade, casamento e constituição familiar em suma, o núcleo encontrado na visão dos pais da personagem.

Em “O Trem, A Estação... Todos os Dias”, o narrador detalha o ambiente da circulação, em meio ao transporte rodoviário na cidade de São Paulo. O relato se encontra em meio as circularidades, mudanças e idas e vindas das pessoas que ali se encontravam com esperança, sonhos e desejos e encontrando também, quem se ia por não conseguir realizar suas vontades de almejos. Um contraponto de fechamento que lembra o início do livro.

            O livro apresenta histórias que se confundam com a solidificação da classe operária e como esta possui uma percepção da sociedade e criando uma representação por meio desta. O livro em muito se assemelha a de outro autor da década de 20, Antônio de Alcântara Machado com seu livro Brás, Bexiga e Barra Funda centro aliás, de grande parte das histórias de Crônicas da Vida Operária. A distinção de ambos, além do tempo, se faz na narrativa e na representação social por eles. Enquanto no livro de Alcântara Machado a existência da cidade se dá por causos, acontecimentos com imigrantes e como eles se juntam na criação de São Paulo, no livro de Jatobá a classe trabalhadora já se encontra presente e vê o crescimento intenso da cidade com agora migrantes. Se em um, os imigrantes já não confiam no mito do enriquecimento aqui estabelecido, no outro os migrantes são atraídos por condições financeiras inimagináveis e que podem possibilitar uma melhora de vida tanto para ele quanto para sua família. Contudo, o fator que os separa, no caso a forma narrativa e temporal é de interessante destaque, pois Jatobá quer fazer dos trabalhadores senhores de sua narrativa e ação diferente de Alcântara Machado que faz uso de uma narrativa descritiva do cotidiano. A inserção do trabalhador como ator de ações, consciente da ocorrência de fatores que o limitam, sua ascensão, queda, marginalização e a realização de um trabalho que ora necessita ou ora descarta é ímpar em nossa literatura e merece uma análise detalhada e profunda que auxilie em mais estudos sobre a década de 70 e suas razões.

            Há artigos que trabalham o livro estudado, em destaque dois artigos feitos recentemente Trabalho e trabalhadores em Crônicas da vida operária, de Roniwalter Jatobá de Guiosepphe Sandri Marques feito em 2017 e Entre o Realismo e o Testemunho: Crônicas da Vida Operária, de Roniwalter Jatobá em 2020 e assim, demonstra a crescente relevância da obra e seu aprofundamento levariam a maiores conhecimentos da representação que essa parcela desenvolvia na sociedade e seu papel de exercer seja reivindicando ou oprimido pelas ações no meio urbano. Nesse ponto, o ganho ao meio acadêmico com uma pesquisa que venha trabalhar conceitos e aprofundar ainda mais nos estudos desenvolvidos nos aspectos sociológicos, acrescentar de forma original uma percepção por meio da representação social e a literatura de uma obra que deve ser estudada e trabalhada com teorias e críticos em um olhar diferente e coerente à crítica da sociologia da literatura. O estudo, portanto, se pauta na relevância de ser inédito em sua proposta, mas com o respaldo de possuir um olhar sobre os temas trabalhados, a obra e a discussão no meio acadêmico que serão acrescentados ao decorrer da pesquisa por meio de aulas, colaboração com os professores, indicações de leituras e correções que serão necessárias até a entrega. O projeto possui interligação com a área de concentração, pois trata das discussões de conceitos, teorias e autores que delimitam, desenvolvem e aprofundam o projeto não ocorrendo fuga ao tema proposto. Sobre a sociedade, autores e conceitos que norteiam a importância e a ocorrência de ações e situações que validam o interesse do período delimitado e estudado e como isso se inserem no período a ser estudado, a ocorrência política daquele período tanto as ações do grupo estudado como a situação política, a questão da ditadura militar no Brasil. Dado as colocações inseridas, a seguir será feito um breve contexto do que será trabalhado.

            Em primeiro nos objetivos estudar e compreender a representação social por meio da obra estudada e com auxílio de conceitos e aspectos que podem acrescentar no estudo desenvolvido. Na Metodologia, o estudo de conceitos que serão fundamentais para a argumentação e o desenvolvimento do projeto com divisões em subtemas que trabalhem e venham acrescer à dissertação em conjunto, teorias que serão desenvolvidas e confrontadas com visões que permitam uma maior exploração do conteúdo estudado. No Cronograma, o passo a passo a ser realizado durante os dois anos referentes ao projeto, as matérias referentes ao mestrado e a defesa da tese e, por fim, as referências bibliográficas que norteiam o trabalho acadêmico. Portanto, o projeto possui condições de ser realizado e finalizado em tempo hábil e com a proposta direcionada para tal, atuando frente aos compromissos necessários que são impares no que tange uma dissertação, o caráter acadêmico e ao programa de pós-graduação em sociologia. 

A Relação Entre a Sociedade e a Literatura

A relação entre a sociedade e a literatura já é conhecida pelo meio acadêmico, inúmeros trabalhos são relacionados à esta prática seja na consistência em analisar a obra em categorias literárias alinhadas à sociedade e/ou analisar as categorias sociológicas alinhadas à literatura. O projeto pretende, aqui, analisar as categorias sociológicas e como estas se alinham no universo literário, precisamente o livro Crônicas da Vida Operária. Serão lançados conceitos de grandes teóricos que venham validar a incursão pretendida.

Em seu livro Notas de Literatura I, o autor alemão Theodor W. Adorno trabalha análises sobre a sociedade e a literatura mais precisamente, a produção do lírico na sociedade. Mesmo focado na construção do eu-lírico e na poesia, Adorno contribui com uma análise sobre a constituição dessa produção ao não isolar o autor de sua sociedade, como nesta passagem em destaque

Não se trata de deduzir a lírica da sociedade; seu teor social é justamente o espontâneo, aquilo que não é simples consequência das relações vigentes em dado momento. (...) Ora, isso quer dizer que também a resistência contra a pressão social não é nada de absolutamente individual; nessa resistência agem artisticamente, através do indivíduo e de espontaneidade, as forças objetivas que impelem para além de situação social limitada e limitante, na direção de uma situação social digna do homem; forças, portanto que fazem parte de uma constituição do todo, não meramente da individualidade inflexível, que se opõe cegamente à sociedade. (ADORNO, 2012, p.73)

 

 O autor apresenta o fator humanizador das relações produtivas da arte e como essa se manifesta no interior da obra, demonstrando que o autor não vive isolado ou apartado de sua sociedade e se correlaciona com ela não em parte, mas pelo todo. Na busca por esse todo e sua constituição, o autor busca expressar pela arte, neste caso a obra literária, o seu teor social, crítico ou de abordagem tendem a sobressair nas condições vigentes e buscar o rompimento deste limite colocado. Se o autor não se encontra isolado dessa realidade, as maneiras que se manifestam devem ser colocadas com formas e conteúdos que abarquem possibilidades sem parecer um tratado ou um dogma, inflexíveis ou reflexivos desta.

O autor, portanto, ao receber tais ações da sociedade tende a reproduzir em suas obras as normas, formas e constituições dessa sociedade. Lucien Goldmann tem uma vasta obra que procura estudar a literatura pelo olhar da sociologia, destacando-se a sociologia do romance que trouxe inúmeras contribuições para o tema. Como insere Celso Frederico,

Goldmann considera uma característica universal do comportamento humano a tendência à coerência. Os homens, perante os desafios colocados pela realidade exterior, procuram agir no sentido de interferir nos acontecimentos através de respostas às questões com que deparam. Esse empenho para adaptar-se à realidade segundo as conveniências humanas faz com que os indivíduos tendam a fazer de seu comportamento uma “estrutura significativa e coerente”. Tal estrutura não é um dado atemporal, como no estruturalismo formalista. Há um processo prévio de elaboração, de gestação, de gênese das estruturas significativas. Além disso, a ação do homem modificando cotidianamente a realidade resulta em um processo contínuo de desestruturação das antigas estruturas e criação de novas. (FREDERICO, 2005, p. 429)

 

A citação possui duas assertivas importantes. A primeira assertiva corresponde a visão de Goldmann referente as respostas que os homens dão aos acontecimentos que se deparam não sendo meros reflexos ou aceitando posições conservadoras no que tange ao processo de formalização e na criação do conteúdo, neste ponto, buscando um rompimento ao que lhe imposto. A segunda assertiva se assegura quando busca colocar as estruturas significativas, ou seja, aquelas que possuem um significado que caracteriza a temporalidade situada nisso, há de pensar a obra literária. Por mais que possua uma busca reprodutiva, um trabalho de tentativa em recriar uma forma ou conteúdo do mundo antigo, por exemplo, este não pode ser recriado com toda sua essência. Essa dificuldade é colocada por uma citação de Goldmann que diz:

Com efeito, o universo do romance clássico tem uma estrutura relativamente homóloga à que regeu o universo da vida cotidiana dos homens no setor econômico onde ele é, também, tematicamente dominado pelo único valor evidente e universal da economia liberal: a autonomia do indivíduo e o seu desenvolvimento. Porém, a partir desta base comum, a evolução da obra e da sociedade é feita em direções divergentes, e a obra se torna não a expressão do grupo social, mas a de uma resistência a este grupo ou, pelo menos, da não aceitação deste. (GOLDMANN, 1972, p.68)

 

Se as estruturas são homólogas e regidas pelo universo e cotidiano do ser humano que a produziu, faz sentido ser significativo, datado e a expressão daquela sociedade daí resulta a impossibilidade de recriação por completa, pois tanto os homens como aquela sociedade já não existem em sua totalidade, somente resquícios que foram modificados ao longo do tempo, pois “o desenvolvimento da história da humanidade pode ser compreendido pela sucessão dos modos de produção. Da mesma forma, consideramos que o desenvolvimento capitalista pode ser compreendido como uma sucessão de regimes de acumulação.” (VIANA, 2009, p.14).

Se a sociedade capitalista é compreendida pela sucessão de regimes de acumulação, se entende, portanto, a última parte da citação de Goldmann a expressão e a resistência de certos grupos, pois estes são dinâmicos e modificados dado a constância modificação e necessidades que são colocadas historicamente, indo à obra, as necessidades e modificações na década de 70 em São Paulo são bem diferentes das condições atuais dessa cidade, além de que a não aceitação pode partir de outros grupos que não os trabalhadores como na década de 70. No próximo tópico será iniciado uma imersão acerca de categorias sociológicas que compõem o livro para melhor entendimentos dos conceitos que serão trabalhados no projeto.

3.2 Conceitos

Os conceitos trabalhados no projeto buscam auxiliar na compreensão do estudo a ser empreendido. Conceitos são necessários para um aporte seguro e crítico da defesa a ser realizada pelo tema trabalhado e um maior aprofundamento deste. Para tanto, o trabalho terá conceitos que venham incrementar em um olhar crítico e profundo sobre o tema proposto.

3.2.1. A Representação Social na Obra

            Ao pensar sobre representação social, de forma até ingênua, a de se pensar que a palavra leva a representar à sociedade ou determinado ponto desta. Ao analisar com mais cautela, há de ser perceber que, a representação social, é um conceito que permite aprofundar e discutir aspectos mais complexos que se manifestação na sociedade.

            Serge Moscovici contribuiu para os estudos sobre representação social ao analisar como este fenômeno impacta no cotidiano por meio de sua forma organizativa que se manifestam em vários pontos “por Representações Sociais entendemos um conjunto de conceitos, proposições e explicações originado na vida cotidiana no curso das comunicações interpessoais” (MOSCOVICI, 1977, p.181). O conceito de representações sociais traz alguns destaques, o primeiro é um conjunto de conceitos, podendo ser eles complexos ou não sobre a vida cotidiana, como na passagem “há muito tinha descoberto no pensamento que o carrinho que empurrava para a montagem final, todo o dia várias vezes, era um aparelho de medição do trabalho, era o meio de saber como tava o serviço, qual era a saída dos carros na linha de montagem” (JATOBÁ, 2006, p.56), a passagem delimita um conceito que compreende o papel desempenhado pelo trabalhador frente ao seu trabalho e como isso impactar no seu cotidiano, com a linha de montagem, uma maior produção e ao conceituar, leva a uma complexidade maior do que somente puxar o carrinho, pois este precisou de tempo, levantar proposições, hipóteses, descartar possibilidades e construir um argumento que valide aquela execução. Ao ir mais profundamente, as representações sociais também levam a um sistema de ocorrências na realidade, portanto, elas precisam ter uma visão sobre um determinado aspecto e se encontre na sociedade e no cotidiano as suas explicações.

            Em acordo com a visão introduzida no parágrafo anterior, Viana conceitua as representações sociais de modo a acrescentar na exposição acima

As representações sociais são concebidas parcialmente pelas pessoas ou pela coletividade, como se fossem um “prolongamento do comportamento”. Elas só existem, para seus produtos, devido ao papel que cumprem: permitem conhecer o comportamento, são expressões de sua atitude frente aos objetos que lhe cercam. Daí sua capacidade criativa, destacada por Moscovici. As representações sociais não são “opiniões sobre”, “imagens de” e, sim, ‘teorias”, ciências coletivas” sui generis, “destinadas a interpretação e elaboração do real”. (VIANA, 2008, p.47)

           

            Portanto o saber promovido pela personagem é a elaboração deste de forma a ser um pouco mais complexo do que somente uma mera explicação curta do real. Esse real precisa fazer sentido e como coloca a obra, em alguns pontos, as explicações se dão pelo espaço urbano, a constituição de uma coletividade longe de outra sociedade diferente e distante, tanto socialmente como geograficamente. As contradições e condições ali encontradas por meio da relação com o trabalho, a mercadoria e outros será destacado e trabalhado nos subtópicos que se seguem.

    3.2.2. A Representação do Trabalho na Obra

A palavra trabalho revela inúmeras interpretações e constituições em suas variadas abordagens, desde a física, a filosofia até passar pela sociologia, a palavra foi aplicada para a explicação de fatores e ações seja num corpo, numa massa ou uma grandeza. As abordagens têm em comum a ação do trabalho que, pelo viés sociológico, terá o seu desenvolvimento estudado no projeto em referência à representação desta pela classe operária.

O trabalho é um fenômeno recorrente na sociedade capitalista, seja no ato de sua realização, execução ou depredação, este conceito foi enriquecido com inúmeros estudiosos dedicados à temática. Um pesquisador que desenvolveu uma discussão sobre trabalho foi István Mészáros que em A Teoria da Alienação em Marx, um livro que discute e atualiza o conceito marxista de trabalho no Século XX. O autor coloca as condições referentes ao conceito de Marx

A primeira dessas características do “trabalho alienado” expressa relação do trabalhador com o produto do seu trabalho(...) A segunda, por sua vez, é a expressão relação de trabalho com o ato de produção no interior do processo de trabalho, isto é, a relação do trabalhador com a sua própria atividade como atividade alheia que não lhe oferece satisfação (...) O terceiro aspecto a alienação do homem com relação ao seu ser genéricoestá relacionada com a concepção segundo a qual o objeto do trabalho é a objetivação da vida e da espécie humana, pois o homem “se duplica não apenas na consciência, intelectual[mente], mas operativa, efetiva[mente], contemplando-se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele”(...) (MÉSZARÓS, 2006, p. 20).

 

               

A citação de Mészarós apresenta pontos que estão inseridos na obra literária a qual será analisada.  Em suas passagens, o trabalhador percebe que o produto ao qual desempenha a sua força e execução não gera satisfação “Vezes algum carro aparecia no pátio sem o carimbo de aprovado. O carro voltava. O feitor encarregado olhava de cima a baixo o automóvel e carimbava a papeleta. Os funileiros, no banheiro, reclamavam.” (p.50). A reclamação fazia parte dessa insatisfação das condições que lhe eram dadas e não satisfaziam suas necessidades. O trabalhador via no objeto que deveria ser a busca de sentido e transformação, um objeto de depredação e frustração, um processo comum àqueles tempos que são narrados na obra.

A dinâmica capitalista no Brasil na década de 70 é resultado dessa corrida para as cidades, a expansão industrial e uma farta necessidade de mão-de-obra que, longe de ser escassa, poderia ser ora demitida ou ora reaproveitada. Como coloca Adalberto Cardoso em A Construção da Sociedade do Trabalho no Brasil,

(...)já que boa parte da literatura social dos anos 1960 e 1970 no país tomou-os [na interpretação da sociedade do trabalho], de um modo ou de outro, como referência. No que se segue, recupero essa tradição para propor reflexão mais geral sobre a incorporação dos trabalhadores na dinâmica capitalista brasileira, tomando em conta evidências trazidas pelo próprio Juarez, às quais agrego outras, para propor leitura alternativa, na verdade bem diversa, dos processos por ele apresentados como aspectos da “crise do Brasil arcaico”. (CARDOSO, 2019, p.187)

           

O desenvolvimento atrasado do país levou a uma corrida por uma industrialização intensa nas décadas citadas, muito pela vinda de multinacionais ao país. O crescimento intenso e a essa absorção da classe operária, levou a incorporação e a um apressado processo que buscava retirar o Brasil do atraso econômico e social. A iniciativa que teve amplo apoio dos militares por meio de planos seja na educação ou em infraestrutura não comportou as dificuldades desse. Ao passo que ia avançando os planos desenvolvidos para uma melhor qualificação da classe operária, das empresas multinacionais e a produção nacional, a mercadoria sofria com condições e qualidades ruins, assunto a ser tratado no próximo subcapítulo.

3.2.3. A Representação da Mercadoria na Obra

A mercadoria é uma categoria de grande importância para a compreensão da análise a ser desenvolvida no projeto. Neste ponto, ao pensar mercadoria, a utilização de Karl Marx será necessária e ímpar para entender o funcionamento desta na sociedade capitalista e como, especificamente, esta atua no livro abordado e na visão da classe operária.

Karl Marx aborda a categoria de mercadoria em muitos dos seus trabalhos ao longo de sua vida, contudo é em O Capital que o autor desenvolve melhor este conceito e aborda a sua importância para a análise da sociedade capitalista. Como aborda no capítulo I do referido livro, Marx conceitua o que é mercadoria

A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer. A natureza dessas necessidades – se, por exemplo, elas provêm do estômago ou da imaginação – não altera em nada a questão. Tampouco se trata aqui de como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência [Lebensmittel], isto é, como objeto de fruição, ou indiretamente, como meio de produção. Toda coisa útil, como ferro, papel etc., deve ser considerada sob um duplo ponto de vista: o da qualidade e o da quantidade. Cada uma dessas coisas é um conjunto de muitas propriedades e pode, por isso, ser útil sob diversos aspectos. Descobrir esses diversos aspectos e, portanto, as múltiplas formas de uso das coisas é um ato histórico. (MARX, 2011, p.157)

 

Ao analisar a mercadoria, Marx apresenta o seu aspecto dual que consiste na quantidade e na qualidade. Ao pensar quantidade, o autor se refere ao aspecto de uma alta produção com os produtos que se possuem, no caso do texto, minérios, madeiras entre outros, pois para se ter uma grande quantidade é preciso ter a disponibilidade de matéria-prima e de meios de produção que possibilitem essa equação demanda. Ao pensar a qualidade, ao olhar de Marx se refere ao aspecto de uso da produção deste. Portanto, um produto que vincule o desejo ao seu uso, ao seu consumo e possibilite a quem adquirir, ser adjetivado sendo referido ao produto que adquiriu. Este pode depender de mais trabalho, tempo, usos de matérias-primas mais complexas o que levará a uma exclusividade e um fator de maior valor para ser comprado. No livro, os trabalhadores reclamam da quantidade dos produtos e como estes somem, além da qualidade destes.

Os carros saíam da montagem e desapareciam no outro dia bem cedo. O pátio enchia, esvaziava, enchia, de manhã tava vazio de novo. O meu carrinho subia a ladeira mais vezes por dia, por pouco não dava conta, eu empurrando com minha força já morta nessas horas de fim de tarde, os braços cansados, as pernas doendo. (JATOBÁ, 2006, p.51)

 

No pátio se misturando aos carros novos, poucos, brilhantes, cheirando a benzina, a cola recente nos estofamentos, os carros velhos vindos com papel pregado no para-brisa, na garantia ainda, as portas roídas nas dobradiças, os para-lamas carcomidos, feios, as cores diversas despelando pelancas, furando a lataria, e a chuva que caía todo o dia ainda mais aumentando a ferrugem vermelha (JATOBÁ, 2006, p.56)

           

As percepções tanto da produção e da deterioração, apontam em corroboração com a citação de Marx. Neste caso, ao demonstrar como os carros sumiam em meio aos pátios e em grande quantidade, um consumo intenso e forte daquela época, pois estava a surgir bens de consumo acessíveis a uma parcela da população, na cidade, que poderia desfrutar de tais condições. Essa quantidade de venda apresenta, na citação posterior, como eram feitas, sem qualidade e em estado de deterioração do valor de seu produto e que necessitavam de trocas após um certo tempo. Ao apresentar tais pontos, o conceito de mercadoria desenvolvido por Marx e seu caráter dual, reverberam para o texto sobre a percepção dos trabalhadores e como estes sentem a depreciação do seu trabalho e da realização por meio da mercadoria. Ao avaliar tal questão é importante ressaltar a composição dessa mão-de-obra e como ocorreu essa imersão numa cidade metropolitana com grande crescimento, no caso São Paulo, assunto que será tratado no próximo subtópico.

3.2.2. A Representação Cultural na Obra

A cultura faz parte da criação e da transmissão do conhecimento e do saber por meio da humanidade como um sedimento de incursões e ações ao longo da história, a cultura se modificou ao longo do tempo para atender as necessidades seja por deslocamento, agricultura, sustento ou sobrevivência. Para tanto, o conceito de cultura deve ser colocado como forma de debate e constatação desses fatores.

No livro Ensaios Sobre o Conceito de Cultura, Zygmunt Bauman debate sobre o conceito apresentando suas questões históricas, diferenciais e genéricas ao longo do tempo, nesse tempo o autor apresenta as inúmeras concepções que nortearam as ciências humanas e contribuíram para o entendimento sobre o conceito. Para Bauman o que se entende é:

A cultura é um esforço perpétuo para superar e remover essa dicotomia. Criatividade e dependência são dois aspectos indispensáveis da existência humana, não apenas condicionando-se, mas sustentando-se mutuamente; não se pode transcendê-los de forma conclusiva – eles só superam sua própria antinomia recriando-a e reconstruindo o ambiente do qual ela foi gerada. A agonia da cultura, portanto, está fadada a uma eterna continuidade; no mesmo sentido, o homem, uma vez dotado da capacidade de cultura, está fadado a explorar, a sentir-se insatisfeito com seu mundo, a destruir e a criar. (BAUMAN, 2012, p.94)

 

Em acordo com Marx, Bauman apresenta a criatividade e transformação como forma a qual o ser humano molda e se relaciona com o mundo e o ambiente. Essa criatividade trouxe aspectos de inovação, sedimentação e acúmulo ao saber humano por meio de expressões que passam desde ferramentas, a língua, a arte e modificações na natureza e a dependência necessária para exercer esse caráter transformador que passa pela necessidade de se adaptar e desenvolver-se em seu meio.

Contudo, a colocação de Bauman não atinge por completo as necessidades referentes do projeto e seu desenvolvimento. Para tanto, o filósofo britânico Terry Eagleton em seu livro A Ideia de Cultura defende uma visão que pretende auxiliar e complementar a citação de Bauman, pois para Eagleton

A palavra, assim, mapeia em seu desdobramento semântico a mudança histórica da própria humanidade da existência rural para a urbana, da criação de porcos a Picasso, do lavrar o solo à divisão do átomo. No linguajar marxista, ela reúne em uma única noção tanto a base como a superestrutura. (...) são os habitantes urbanos que são “cultos”, e aqueles que realmente vivem lavrados o solo não o são. (EAGLETON, 2011, p.10)

 

Eagleton vai no que se almeja da análise do projeto, o processo urbano em contradição ao processo rural como expresso no livro em algumas passagens como sobre a quantidade de pessoas nas ruas, o uso de maquinários que não se encontram na cidade a qual nasceram, novas formas de relações em virtude da cidade, a marginalização e entre outros. Essa contradição que se produz entre o meio urbano e o meio rural é, de fato, um choque que acompanha a narrativa e o desenrolar do livro e que se encontra na própria sociedade da década de 70. Como trabalhado por Goldmann, as condições existentes na literatura têm muito das condições dessa sociedade e, portanto, a sua reprodução se dará por amplos meios e ações. E com essas condições e reproduções existentes que o projeto pretende se empenhar em fazer uma análise e um recorte de como tais estruturas se encontram por meio da sociedade e no viés literário.

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