A Representação Social em Crônicas da Vida Operária, de Roniwalter Jatobá
O presente trabalho pretende
estudar a representação social, precisamente, em Crônicas da Vida Operária
de Roniwalter Jatobá. A escolha em um tema tão específico e delimitado não se
faz ao acaso, tendo em vista a natureza do conteúdo e questões por ele
trabalhadas.
Em um primeiro ponto, os relatos
e as visões da classe operária no universo literário, pois já são conhecidos estudos
no meio acadêmico sobre o operariado, sua constituição e desenvolvimento. Há de
se citar o livro de Maria Auxiliadora Guzzo de Decca Indústria, Trabalho e
Cotidiano: Brasil – 1889 a 1930 onde se discute o processo de formação da
classe trabalhadora e sua constituição, principalmente na cidade de São Paulo
como percebe a autora “São Paulo torna-se, a partir desta data, o maior centro
industrial brasileiro” (DECCA, 2000, p.25) e de Eclea Bosi Cultura Popular:
Leituras de Operárias ao qual a autora apresenta as leituras e visões sobre
a cultura popular por parte de operárias em que “Tão admirável como
seria o mundo que elas fossem chamadas a construir e a transformar com todas as
virtualidades de sua pessoa, não apenas com a força do trabalho.” (BOSI, 1996, p.151),
ou até mesmo a quem trabalha e
desenvolve o conceito, Marx e Engels em vários livros, principalmente o Manifesto
Comunista.
O segundo ponto seria a
manifestação cultural do tema que é bem recorrente como em músicas da MPB,
principalmente “Construção” e “Pedro Pedreiro” de Chico Buarque de Holanda, a
peça teatral “Eles Não Usam Black-Tie” de Gianfrancesco Guarnieri, em
documentários como “ABC da Greve” de León Hirszman, onde a teia narrativa na
proposta trabalhada contempla a visão do operário. Contudo, dentro da
literatura brasileira, como colocado por Fernando Morais no prefácio do livro
“(...) era um dos poucos, no Brasil de hoje, a escrever sobre um tema fora de
moda na nossa literatura: a classe operária.”(MORAIS, 2006, p.5), logo, não há
o costume dentro da literatura brasileira à manifestação de relatos que tentem
colocar o trabalhador a compartilhar
sobre suas visões, ações, àquilo que remete as suas contradições, anseios,
dramas e desejos e que, ao final, mostra o trabalhador inserido dentro de uma
sociedade com estruturas, condições e limitações e essa fagocitando o homem, o espaço
e o tempo num Brasil na década de 70, precisamente, na cidade de São Paulo e na
região do ABC.
O terceiro e último ponto
que se faz mais importante, se dá pela sociedade que ela se insere e como isso
é trabalhado ao longo do livro. Ao pensar a sociedade brasileira na década de
70 percebe-se a contradição inserida, primeiro o crescimento e a transformação
do Brasil num país mais urbano que rural, o segundo ponto o avanço e o
endurecimento da ditadura militar, terceiro ponto a migração intensa,
principalmente da região nordeste para a região sudeste, neste caso, o estado
de São Paulo, ao passo final de uma maior contratação de mão-de-obra por
multinacionais estrangeiras com destaque as empresas do ramo automobilístico.
Em a Mão Esquerda,
vemos o relato de um narrador em primeira pessoa que relata fatos ocorridos em
seu trabalho ao ter um acidente em sua mão esquerda e que o impossibilita de
continuar no seu trabalho. Tudo isso contado por viés memorialístico, de sonhos
para com o trabalho e a busca de melhores condições financeiras para sua vida e
assim, também ajudar a sua família. Tudo isso por cartas que envia para a sua
cidade, parece ser no interior do Nordeste, é que é lida pela professora que
lhe ensinou a ler e a escrever, pois os seus país são analfabetos.
Em “As Memórias em
Alojamento” com relação ao frio, as modificações na cidade e o impacto
cultural. Vemos também, a apresentação de condições precárias e de subsistência
que apresentam a desumanização deste trabalhador e esse encontro em momentos
que se constituem de forma até além, por exemplo, o aquecimento de corpos
masculinos para aquecer no frio ou olhar amoroso para a empregada safada.
Em “Pano Vermelho”,
o narrador conta por meio de anos, as modificações que sofreu ao longo da sua
vida. Em meio as reclamações, perdas, mortes e o crescimento. O personagem vê
perder a fé a força que encontra em seu diário anual resumido com fatos e
eventos que chocam pela síntese e problemática frente à cidade e ao trabalho,
por fim o personagem, de forma triste, assiste o filho mais velho prosseguir as
mesmas questões que as suas, talvez com a mesma ilusão que outrora o narrador
tivesse.
Em “Trabalhadores”,
o narrador apresenta três personagens com o mesmo nome e destinos distintos em
sua escolha, focando em um que se chamava somente João, diferente de João
Jacinto e João Serafim. João narra o trabalho na fábrica, sua relação com o
corte, desemprego e o banheiro como fonte de informação e percepção das
ocorrências pelo desgaste, deterioração e falta de perspectiva frente ao
trabalho. Em confronto com esse cenário, o narrador apresenta o clima da
cidade, distinto da sua cidade, o transporte que sempre falha e se encontra
precário e a noção da sua importância como mediador do trabalho que ocorria na
fábrica. Sua história relata uma sobrevivência e uma lembrança diferente dos
outros aos quais cruzou que ou foram esquecidos ou mortos pela não passividade
que este se encontrava.
Em “No Olhos,
Gases e Batatas”, a narrativa se desenrola frente as condições encontradas em
meio a uma pensão habitada por trabalhadores de fábricas situadas em São Paulo.
O relato mostra a dificuldade de tais trabalhadores frente ao processo de
marginalização, a alimentação e a realização de leitura que fica prejudicada
por conta dos gases e das batatas poluídas em virtude do esgoto que se faz
presente nas proximidades, levando a fúria e ira da personagem principal.
Em “Duas Margens”,
a personagem narra em terceira pessoa os acontecimentos de sua filha que foi
engravidada em virtude de uma relação amorosa entre patrão e empregada,
apresentando os contrastes culturais entre o meio urbano e rural tais como, os
valores da virgindade, casamento e constituição familiar em suma, o núcleo
encontrado na visão dos pais da personagem.
Em “O Trem, A
Estação... Todos os Dias”, o narrador detalha o ambiente da circulação, em meio
ao transporte rodoviário na cidade de São Paulo. O relato se encontra em meio
as circularidades, mudanças e idas e vindas das pessoas que ali se encontravam
com esperança, sonhos e desejos e encontrando também, quem se ia por não
conseguir realizar suas vontades de almejos. Um contraponto de fechamento que
lembra o início do livro.
O
livro apresenta histórias que se confundam com a solidificação da classe
operária e como esta possui uma percepção da sociedade e criando uma
representação por meio desta. O livro em muito se assemelha a de outro autor da
década de 20, Antônio de Alcântara Machado com seu livro Brás, Bexiga e
Barra Funda centro aliás, de grande parte das histórias de Crônicas da
Vida Operária. A distinção de ambos, além do tempo, se faz na narrativa e
na representação social por eles. Enquanto no livro de Alcântara Machado a
existência da cidade se dá por causos, acontecimentos com imigrantes e como
eles se juntam na criação de São Paulo, no livro de Jatobá a classe
trabalhadora já se encontra presente e vê o crescimento intenso da cidade com
agora migrantes. Se em um, os imigrantes já não confiam no mito do
enriquecimento aqui estabelecido, no outro os migrantes são atraídos por
condições financeiras inimagináveis e que podem possibilitar uma melhora de
vida tanto para ele quanto para sua família. Contudo, o fator que os separa, no
caso a forma narrativa e temporal é de interessante destaque, pois Jatobá quer
fazer dos trabalhadores senhores de sua narrativa e ação diferente de Alcântara
Machado que faz uso de uma narrativa descritiva do cotidiano. A inserção do
trabalhador como ator de ações, consciente da ocorrência de fatores que o
limitam, sua ascensão, queda, marginalização e a realização de um trabalho que
ora necessita ou ora descarta é ímpar em nossa literatura e merece uma análise
detalhada e profunda que auxilie em mais estudos sobre a década de 70 e suas
razões.
Há
artigos que trabalham o livro estudado, em destaque dois artigos feitos
recentemente Trabalho e trabalhadores em Crônicas da
vida operária, de Roniwalter Jatobá de Guiosepphe Sandri
Marques feito em 2017 e Entre o Realismo e o Testemunho: Crônicas da Vida Operária,
de Roniwalter Jatobá em 2020 e assim, demonstra a crescente
relevância da obra e seu aprofundamento levariam a maiores conhecimentos da
representação que essa parcela desenvolvia na sociedade e seu papel de exercer
seja reivindicando ou oprimido pelas ações no meio urbano. Nesse ponto, o ganho
ao meio acadêmico com uma pesquisa que venha trabalhar conceitos e aprofundar
ainda mais nos estudos desenvolvidos nos aspectos sociológicos, acrescentar de
forma original uma percepção por meio da representação social e a literatura de
uma obra que deve ser estudada e trabalhada com teorias e críticos em um olhar
diferente e coerente à crítica da sociologia da literatura. O estudo, portanto,
se pauta na relevância de ser inédito em sua proposta, mas com o respaldo de
possuir um olhar sobre os temas trabalhados, a obra e a discussão no meio
acadêmico que serão acrescentados ao decorrer da pesquisa por meio de aulas,
colaboração com os professores, indicações de leituras e correções que serão
necessárias até a entrega. O projeto possui interligação com a área de
concentração, pois trata das discussões de conceitos, teorias e autores que
delimitam, desenvolvem e aprofundam o projeto não ocorrendo fuga ao tema
proposto. Sobre a sociedade, autores e conceitos que norteiam a importância e a
ocorrência de ações e situações que validam o interesse do período delimitado e
estudado e como isso se inserem no período a ser estudado, a ocorrência
política daquele período tanto as ações do grupo estudado como a situação
política, a questão da ditadura militar no Brasil. Dado as colocações inseridas,
a seguir será feito um breve contexto do que será trabalhado.
Em primeiro nos objetivos estudar e
compreender a representação social por meio da obra estudada e com auxílio de
conceitos e aspectos que podem acrescentar no estudo desenvolvido. Na
Metodologia, o estudo de conceitos que serão fundamentais para a argumentação e
o desenvolvimento do projeto com divisões em subtemas que trabalhem e venham
acrescer à dissertação em conjunto, teorias que serão desenvolvidas e
confrontadas com visões que permitam uma maior exploração do conteúdo estudado.
No Cronograma, o passo a passo a ser realizado durante os dois anos referentes
ao projeto, as matérias referentes ao mestrado e a defesa da tese e, por fim,
as referências bibliográficas que norteiam o trabalho acadêmico. Portanto, o
projeto possui condições de ser realizado e finalizado em tempo hábil e com a
proposta direcionada para tal, atuando frente aos compromissos necessários que
são impares no que tange uma dissertação, o caráter acadêmico e ao programa de
pós-graduação em sociologia.
A Relação Entre a Sociedade e a Literatura
A relação
entre a sociedade e a literatura já é conhecida pelo meio acadêmico, inúmeros
trabalhos são relacionados à esta prática seja na consistência em analisar a
obra em categorias literárias alinhadas à sociedade e/ou analisar as categorias
sociológicas alinhadas à literatura. O projeto pretende, aqui, analisar as
categorias sociológicas e como estas se alinham no universo literário,
precisamente o livro Crônicas da Vida Operária. Serão lançados conceitos
de grandes teóricos que venham validar a incursão pretendida.
Em seu livro
Notas de Literatura I, o autor alemão Theodor W. Adorno trabalha
análises sobre a sociedade e a literatura mais precisamente, a produção do
lírico na sociedade. Mesmo focado na construção do eu-lírico e na poesia,
Adorno contribui com uma análise sobre a constituição dessa produção ao não
isolar o autor de sua sociedade, como nesta passagem em destaque
Não se trata de deduzir a lírica da sociedade; seu teor social é
justamente o espontâneo, aquilo que não é simples consequência das relações
vigentes em dado momento. (...) Ora, isso quer dizer que também a resistência
contra a pressão social não é nada de absolutamente individual; nessa
resistência agem artisticamente, através do indivíduo e de espontaneidade, as
forças objetivas que impelem para além de situação social limitada e limitante,
na direção de uma situação social digna do homem; forças, portanto que fazem
parte de uma constituição do todo, não meramente da individualidade inflexível,
que se opõe cegamente à sociedade. (ADORNO, 2012, p.73)
O autor apresenta o fator humanizador das
relações produtivas da arte e como essa se manifesta no interior da obra,
demonstrando que o autor não vive isolado ou apartado de sua sociedade e se
correlaciona com ela não em parte, mas pelo todo. Na busca por esse todo e sua
constituição, o autor busca expressar pela arte, neste caso a obra literária, o
seu teor social, crítico ou de abordagem tendem a sobressair nas condições
vigentes e buscar o rompimento deste limite colocado. Se o autor não se
encontra isolado dessa realidade, as maneiras que se manifestam devem ser
colocadas com formas e conteúdos que abarquem possibilidades sem parecer um
tratado ou um dogma, inflexíveis ou reflexivos desta.
O autor,
portanto, ao receber tais ações da sociedade tende a reproduzir em suas obras
as normas, formas e constituições dessa sociedade. Lucien Goldmann tem uma
vasta obra que procura estudar a literatura pelo olhar da sociologia, destacando-se
a sociologia do romance que trouxe inúmeras contribuições para o tema. Como
insere Celso Frederico,
Goldmann
considera uma característica universal do comportamento humano a tendência à
coerência. Os homens, perante os desafios colocados pela realidade exterior,
procuram agir no sentido de interferir nos acontecimentos através de respostas
às questões com que deparam. Esse empenho para adaptar-se à realidade segundo
as conveniências humanas faz com que os indivíduos tendam a fazer de seu
comportamento uma “estrutura significativa e coerente”. Tal estrutura não é um
dado atemporal, como no estruturalismo formalista. Há um processo prévio de
elaboração, de gestação, de gênese das estruturas significativas. Além disso,
a ação do homem modificando cotidianamente a realidade resulta em um processo
contínuo de desestruturação das antigas estruturas e criação de novas. (FREDERICO,
2005, p. 429)
A
citação possui duas assertivas importantes. A primeira assertiva corresponde a
visão de Goldmann referente as respostas que os homens dão aos acontecimentos
que se deparam não sendo meros reflexos ou aceitando posições conservadoras no
que tange ao processo de formalização e na criação do conteúdo, neste ponto,
buscando um rompimento ao que lhe imposto. A segunda assertiva se assegura
quando busca colocar as estruturas significativas, ou seja, aquelas que possuem
um significado que caracteriza a temporalidade situada nisso, há de pensar a
obra literária. Por mais que possua uma busca reprodutiva, um trabalho de
tentativa em recriar uma forma ou conteúdo do mundo antigo, por exemplo, este
não pode ser recriado com toda sua essência. Essa dificuldade é colocada por
uma citação de Goldmann que diz:
Com
efeito, o universo do romance clássico tem uma estrutura relativamente homóloga
à que regeu o universo da vida cotidiana dos homens no setor econômico onde ele
é, também, tematicamente dominado pelo único valor evidente e universal da
economia liberal: a autonomia do indivíduo e o seu desenvolvimento. Porém, a
partir desta base comum, a evolução da obra e da sociedade é feita em direções
divergentes, e a obra se torna não a expressão do grupo social, mas a de uma
resistência a este grupo ou, pelo menos, da não aceitação deste. (GOLDMANN,
1972, p.68)
Se
as estruturas são homólogas e regidas pelo universo e cotidiano do ser humano
que a produziu, faz sentido ser significativo, datado e a expressão daquela
sociedade daí resulta a impossibilidade de recriação por completa, pois tanto
os homens como aquela sociedade já não existem em sua totalidade, somente
resquícios que foram modificados ao longo do tempo, pois “o desenvolvimento da
história da humanidade pode ser compreendido pela sucessão dos modos de
produção. Da mesma forma, consideramos que o desenvolvimento capitalista pode
ser compreendido como uma sucessão de regimes de acumulação.” (VIANA, 2009,
p.14).
Se
a sociedade capitalista é compreendida pela sucessão de regimes de acumulação,
se entende, portanto, a última parte da citação de Goldmann a expressão e a
resistência de certos grupos, pois estes são dinâmicos e modificados dado a
constância modificação e necessidades que são colocadas historicamente, indo à
obra, as necessidades e modificações na década de 70 em São Paulo são bem
diferentes das condições atuais dessa cidade, além de que a não aceitação pode
partir de outros grupos que não os trabalhadores como na década de 70. No
próximo tópico será iniciado uma imersão acerca de categorias sociológicas que
compõem o livro para melhor entendimentos dos conceitos que serão trabalhados
no projeto.
3.2 Conceitos
Os conceitos
trabalhados no projeto buscam auxiliar na compreensão do estudo a ser
empreendido. Conceitos são necessários para um aporte seguro e crítico da
defesa a ser realizada pelo tema trabalhado e um maior aprofundamento deste.
Para tanto, o trabalho terá conceitos que venham incrementar em um olhar crítico
e profundo sobre o tema proposto.
3.2.1. A Representação Social na Obra
Ao
pensar sobre representação social, de forma até ingênua, a de se pensar que a
palavra leva a representar à sociedade ou determinado ponto desta. Ao analisar
com mais cautela, há de ser perceber que, a representação social, é um conceito
que permite aprofundar e discutir aspectos mais complexos que se manifestação
na sociedade.
Serge
Moscovici contribuiu para os estudos sobre representação social ao analisar
como este fenômeno impacta no cotidiano por meio de sua forma organizativa que
se manifestam em vários pontos “por Representações Sociais entendemos um
conjunto de conceitos, proposições e explicações originado na vida cotidiana no
curso das comunicações interpessoais” (MOSCOVICI, 1977, p.181). O conceito de
representações sociais traz alguns destaques, o primeiro é um conjunto de
conceitos, podendo ser eles complexos ou não sobre a vida cotidiana, como na
passagem “há muito tinha descoberto no pensamento que o carrinho que empurrava
para a montagem final, todo o dia várias vezes, era um aparelho de medição do
trabalho, era o meio de saber como tava o serviço, qual era a saída dos carros
na linha de montagem” (JATOBÁ, 2006, p.56), a passagem delimita um conceito que
compreende o papel desempenhado pelo trabalhador frente ao seu trabalho e como
isso impactar no seu cotidiano, com a linha de montagem, uma maior produção e
ao conceituar, leva a uma complexidade maior do que somente puxar o carrinho,
pois este precisou de tempo, levantar proposições, hipóteses, descartar possibilidades
e construir um argumento que valide aquela execução. Ao ir mais profundamente,
as representações sociais também levam a um sistema de ocorrências na
realidade, portanto, elas precisam ter uma visão sobre um determinado aspecto e
se encontre na sociedade e no cotidiano as suas explicações.
Em
acordo com a visão introduzida no parágrafo anterior, Viana conceitua as
representações sociais de modo a acrescentar na exposição acima
As representações sociais são concebidas parcialmente pelas pessoas ou
pela coletividade, como se fossem um “prolongamento do comportamento”. Elas só
existem, para seus produtos, devido ao papel que cumprem: permitem conhecer o
comportamento, são expressões de sua atitude frente aos objetos que lhe cercam.
Daí sua capacidade criativa, destacada por Moscovici. As representações sociais
não são “opiniões sobre”, “imagens de” e, sim, ‘teorias”, ciências coletivas” sui
generis, “destinadas a interpretação e elaboração do real”. (VIANA, 2008,
p.47)
Portanto
o saber promovido pela personagem é a elaboração deste de forma a ser um pouco
mais complexo do que somente uma mera explicação curta do real. Esse real
precisa fazer sentido e como coloca a obra, em alguns pontos, as explicações se
dão pelo espaço urbano, a constituição de uma coletividade longe de outra
sociedade diferente e distante, tanto socialmente como geograficamente. As
contradições e condições ali encontradas por meio da relação com o trabalho, a
mercadoria e outros será destacado e trabalhado nos subtópicos que se seguem.
3.2.2.
A Representação do Trabalho na Obra
A palavra
trabalho revela inúmeras interpretações e constituições em suas variadas
abordagens, desde a física, a filosofia até passar pela sociologia, a palavra
foi aplicada para a explicação de fatores e ações seja num corpo, numa massa ou
uma grandeza. As abordagens têm em comum a ação do trabalho que, pelo viés
sociológico, terá o seu desenvolvimento estudado no projeto em referência à representação
desta pela classe operária.
O trabalho é
um fenômeno recorrente na sociedade capitalista, seja no ato de sua realização,
execução ou depredação, este conceito foi enriquecido com inúmeros estudiosos
dedicados à temática. Um pesquisador que desenvolveu uma discussão sobre
trabalho foi István Mészáros que em A Teoria da Alienação em Marx, um
livro que discute e atualiza o conceito marxista de trabalho no Século XX. O
autor coloca as condições referentes ao conceito de Marx
A primeira dessas características do “trabalho alienado” expressa
relação do trabalhador com o produto do seu trabalho(...) A segunda, por
sua vez, é a expressão relação de trabalho com o ato de produção no
interior do processo de trabalho, isto é, a relação do trabalhador com a sua
própria atividade como atividade alheia que não lhe oferece satisfação (...) O
terceiro aspecto — a alienação do homem com relação ao
seu ser genérico — está relacionada com a concepção segundo a qual o
objeto do trabalho é a objetivação da vida e da espécie humana, pois o
homem “se duplica não apenas na consciência,
intelectual[mente], mas operativa, efetiva[mente], contemplando-se, por isso, a
si mesmo num mundo criado por ele”(...) (MÉSZARÓS, 2006, p. 20).
A
citação de Mészarós apresenta pontos que estão inseridos na obra literária a
qual será analisada. Em suas passagens,
o trabalhador percebe que o produto ao qual desempenha a sua força e execução
não gera satisfação “Vezes algum carro aparecia no pátio sem o carimbo de
aprovado. O carro voltava. O feitor encarregado olhava de cima a baixo o automóvel
e carimbava a papeleta. Os funileiros, no banheiro, reclamavam.” (p.50). A
reclamação fazia parte dessa insatisfação das condições que lhe eram dadas e
não satisfaziam suas necessidades. O trabalhador via no objeto que deveria ser
a busca de sentido e transformação, um objeto de depredação e frustração, um
processo comum àqueles tempos que são narrados na obra.
A
dinâmica capitalista no Brasil na década de 70 é resultado dessa corrida para
as cidades, a expansão industrial e uma farta necessidade de mão-de-obra que,
longe de ser escassa, poderia ser ora demitida ou ora reaproveitada. Como
coloca Adalberto Cardoso em A Construção da Sociedade do Trabalho no Brasil,
(...)já
que boa parte da literatura social dos anos 1960 e 1970 no país tomou-os [na
interpretação da sociedade do trabalho], de um modo ou de outro, como referência.
No que se segue, recupero essa tradição para propor reflexão mais geral sobre a
incorporação dos trabalhadores na dinâmica capitalista brasileira, tomando em
conta evidências trazidas pelo próprio Juarez, às quais agrego outras, para
propor leitura alternativa, na verdade bem diversa, dos processos por ele
apresentados como aspectos da “crise do Brasil arcaico”. (CARDOSO, 2019, p.187)
O
desenvolvimento atrasado do país levou a uma corrida por uma industrialização
intensa nas décadas citadas, muito pela vinda de multinacionais ao país. O
crescimento intenso e a essa absorção da classe operária, levou a incorporação
e a um apressado processo que buscava retirar o Brasil do atraso econômico e
social. A iniciativa que teve amplo apoio dos militares por meio de planos seja
na educação ou em infraestrutura não comportou as dificuldades desse. Ao passo
que ia avançando os planos desenvolvidos para uma melhor qualificação da classe
operária, das empresas multinacionais e a produção nacional, a mercadoria
sofria com condições e qualidades ruins, assunto a ser tratado no próximo
subcapítulo.
3.2.3. A Representação da Mercadoria na Obra
A
mercadoria é uma categoria de grande importância para a compreensão da análise
a ser desenvolvida no projeto. Neste ponto, ao pensar mercadoria, a utilização
de Karl Marx será necessária e ímpar para entender o funcionamento desta na
sociedade capitalista e como, especificamente, esta atua no livro abordado e na
visão da classe operária.
Karl
Marx aborda a categoria de mercadoria em muitos dos seus trabalhos ao longo de
sua vida, contudo é em O Capital que o autor desenvolve melhor este
conceito e aborda a sua importância para a análise da sociedade capitalista.
Como aborda no capítulo I do referido livro, Marx conceitua o que é mercadoria
A
mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas
propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer. A natureza dessas
necessidades – se, por exemplo, elas provêm do estômago ou da imaginação – não
altera em nada a questão. Tampouco se trata aqui de como a coisa satisfaz a
necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência [Lebensmittel],
isto é, como objeto de fruição, ou indiretamente, como meio de produção. Toda
coisa útil, como ferro, papel etc., deve ser considerada sob um duplo ponto de
vista: o da qualidade e o da quantidade. Cada uma dessas coisas é um conjunto
de muitas propriedades e pode, por isso, ser útil sob diversos aspectos.
Descobrir esses diversos aspectos e, portanto, as múltiplas formas de uso das
coisas é um ato histórico. (MARX, 2011, p.157)
Ao
analisar a mercadoria, Marx apresenta o seu aspecto dual que consiste na quantidade
e na qualidade. Ao pensar quantidade, o autor se refere ao aspecto de uma alta
produção com os produtos que se possuem, no caso do texto, minérios, madeiras
entre outros, pois para se ter uma grande quantidade é preciso ter a
disponibilidade de matéria-prima e de meios de produção que possibilitem essa
equação demanda. Ao pensar a qualidade, ao olhar de Marx se refere ao aspecto
de uso da produção deste. Portanto, um produto que vincule o desejo ao seu uso,
ao seu consumo e possibilite a quem adquirir, ser adjetivado sendo referido ao
produto que adquiriu. Este pode depender de mais trabalho, tempo, usos de
matérias-primas mais complexas o que levará a uma exclusividade e um fator de
maior valor para ser comprado. No livro, os trabalhadores reclamam da
quantidade dos produtos e como estes somem, além da qualidade destes.
Os
carros saíam da montagem e desapareciam no outro dia bem cedo. O pátio enchia,
esvaziava, enchia, de manhã tava vazio de novo. O meu carrinho subia a ladeira
mais vezes por dia, por pouco não dava conta, eu empurrando com minha força já
morta nessas horas de fim de tarde, os braços cansados, as pernas doendo.
(JATOBÁ, 2006, p.51)
No
pátio se misturando aos carros novos, poucos, brilhantes, cheirando a benzina,
a cola recente nos estofamentos, os carros velhos vindos com papel pregado no
para-brisa, na garantia ainda, as portas roídas nas dobradiças, os para-lamas
carcomidos, feios, as cores diversas despelando pelancas, furando a lataria, e
a chuva que caía todo o dia ainda mais aumentando a ferrugem vermelha (JATOBÁ,
2006, p.56)
As
percepções tanto da produção e da deterioração, apontam em corroboração com a
citação de Marx. Neste caso, ao demonstrar como os carros sumiam em meio aos
pátios e em grande quantidade, um consumo intenso e forte daquela época, pois
estava a surgir bens de consumo acessíveis a uma parcela da população, na
cidade, que poderia desfrutar de tais condições. Essa quantidade de venda
apresenta, na citação posterior, como eram feitas, sem qualidade e em estado de
deterioração do valor de seu produto e que necessitavam de trocas após um certo
tempo. Ao apresentar tais pontos, o conceito de mercadoria desenvolvido por
Marx e seu caráter dual, reverberam para o texto sobre a percepção dos
trabalhadores e como estes sentem a depreciação do seu trabalho e da realização
por meio da mercadoria. Ao avaliar tal questão é importante ressaltar a
composição dessa mão-de-obra e como ocorreu essa imersão numa cidade
metropolitana com grande crescimento, no caso São Paulo, assunto que será
tratado no próximo subtópico.
3.2.2. A Representação Cultural na Obra
A
cultura faz parte da criação e da transmissão do conhecimento e do saber por
meio da humanidade como um sedimento de incursões e ações ao longo da história,
a cultura se modificou ao longo do tempo para atender as necessidades seja por
deslocamento, agricultura, sustento ou sobrevivência. Para tanto, o conceito de
cultura deve ser colocado como forma de debate e constatação desses fatores.
No
livro Ensaios Sobre o Conceito de Cultura, Zygmunt Bauman debate sobre o
conceito apresentando suas questões históricas, diferenciais e genéricas ao
longo do tempo, nesse tempo o autor apresenta as inúmeras concepções que
nortearam as ciências humanas e contribuíram para o entendimento sobre o
conceito. Para Bauman o que se entende é:
A cultura é um esforço perpétuo para
superar e remover essa dicotomia. Criatividade e dependência são dois aspectos
indispensáveis da existência humana, não apenas condicionando-se, mas
sustentando-se mutuamente; não se pode transcendê-los de forma conclusiva
– eles só superam sua própria
antinomia recriando-a e reconstruindo o ambiente do qual ela foi gerada. A
agonia da cultura, portanto, está fadada a uma eterna continuidade; no mesmo
sentido, o homem, uma vez dotado da capacidade de cultura, está fadado a
explorar, a sentir-se insatisfeito com seu mundo, a destruir e a criar.
(BAUMAN, 2012, p.94)
Em acordo com Marx, Bauman apresenta
a criatividade e transformação como forma a qual o ser humano molda e se
relaciona com o mundo e o ambiente. Essa criatividade trouxe aspectos de
inovação, sedimentação e acúmulo ao saber humano por meio de expressões que
passam desde ferramentas, a língua, a arte e modificações na natureza e a
dependência necessária para exercer esse caráter transformador que passa pela
necessidade de se adaptar e desenvolver-se em seu meio.
Contudo, a colocação de Bauman não
atinge por completo as necessidades referentes do projeto e seu
desenvolvimento. Para tanto, o filósofo britânico Terry Eagleton em seu livro A
Ideia de Cultura defende uma visão que pretende auxiliar e complementar a
citação de Bauman, pois para Eagleton
A palavra, assim, mapeia em seu
desdobramento semântico a mudança histórica da própria humanidade da existência
rural para a urbana, da criação de porcos a Picasso, do lavrar o solo à divisão
do átomo. No linguajar marxista, ela reúne em uma única noção tanto a base como
a superestrutura. (...) são os habitantes urbanos que são “cultos”, e aqueles
que realmente vivem lavrados o solo não o são. (EAGLETON, 2011, p.10)
Eagleton vai no que se almeja da
análise do projeto, o processo urbano em contradição ao processo rural como
expresso no livro em algumas passagens como sobre a quantidade de pessoas nas
ruas, o uso de maquinários que não se encontram na cidade a qual nasceram,
novas formas de relações em virtude da cidade, a marginalização e entre outros.
Essa contradição que se produz entre o meio urbano e o meio rural é, de fato,
um choque que acompanha a narrativa e o desenrolar do livro e que se encontra
na própria sociedade da década de 70. Como trabalhado por Goldmann, as
condições existentes na literatura têm muito das condições dessa sociedade e,
portanto, a sua reprodução se dará por amplos meios e ações. E com essas
condições e reproduções existentes que o projeto pretende se empenhar em fazer
uma análise e um recorte de como tais estruturas se encontram por meio da
sociedade e no viés literário.
REFERÊNCIAS
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